Por Amanda Dutra
Há quem diga ou apenas pense: “O esporte masculiniza a mulher”. Este equívoco não é incomum, tampouco, atual. Os gregos, na Antiguidade já pensavam assim quando proibiam a participação de mulheres nos Jogos Olímpicos da época, alegando que a prática era perigosa aos “frágeis” corpos femininos.
É evidente que a mulher foi, e é, historicamente excluída do esporte, seja por proibições diretas ou opressões advindas do preconceito. No Brasil, o retrato atual das mulheres do meio esportivo não se desvia deste fato. A discriminação e a falta de oportunidades são gritantes. A atleta que se destaca em uma modalidade é aquela que, persistentemente, não foge à luta contra estas barreiras. No país onde, há poucas décadas, diversas modalidades eram proibidas por lei, inclusive o futebol, esporte mais popular do Brasil, não é de se espantar a dificuldade em ser uma esportista atualmente.
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Grande parte das atletas brasileiras detém de, ao menos, um episódio turbulento em suas carreiras: seja pela falta de patrocínios e investimentos, de apoio familiar, ou até mesmo pelo preconceito imposto por ser mulher. A motivo de traçar narrativas que ressaltem a realidade das atletas, três esportistas foram ouvidas: Ana Paula Pacheco e Regiane Braga, ambas do Atletismo, e Laís Nunes, do Wrestling, popularmente conhecido como luta olímpica.
Cenário brasileiro
O Brasil é berço de diversas esportistas vitoriosas. Mulheres que ocupam seus espaços no âmbito do esporte, mesmo com o preconceito encucado na sociedade. Se levarmos em conta que, no Governo Vargas, há pouco menos de 80 anos, a mulher era proibida por lei da prática de alguns desportos ditos “incompatíveis com as condições de sua natureza” (Artigo 54 do decreto lei Nº 3.199, de 1941), percebemos a raiz do atraso no desenvolvimento esportivo feminino no Brasil.
E ainda, com a Ditadura Militar, a situação piorou para as atletas. Em 1965, o Conselho Nacional de Desportos decretava, com base no artigo 54 já citado, que, às mulheres, “não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo-aquático, pólo, rugby, halterofilismo e baseball”.
Atualmente, não há restrições legais que proíbam uma pessoa do gênero feminino de praticar qualquer esporte. Porém, o machismo estrutural e a inferiorização da mulher, no Brasil, têm sido mecanismos de deslegitimação das capacidades físicas e emocionais femininas ante ao esforço corporal de um desporto.
No entanto, de acordo com uma pesquisa de 2021 do Instituto DataSenado, juntamente com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), sobre equidade de gênero nos esportes, a situação vem melhorando. O documento qualitativo revelou que, apesar de ainda haver diversos desafios na inserção desportiva feminina, nos últimos quatro anos, houve um avanço significativo em relação à participação e visibilidade das mulheres: “Marcas recentes são as transmissões televisivas de campeonatos como a Copa Mundial Feminina de Futebol 2019 e a projeção de figuras públicas que valorizam o esporte feminino”.
Esportistas, brasileiras, interioranas
Ana Paula Pacheco, velocista, 31 anos, treina duas vezes ao dia, cotidianamente, na academia e nas pistas de Catalão-GO. Também atua como educadora física e ainda cursa Teologia. Regiane Braga, fundista, 34 anos, além de atleta, é mãe e trabalha como auxiliar de logística em uma montadora de veículos de Anápolis-GO. Laís Nunes, atleta de Wrestling, 29 anos, saiu de Barro Alto-GO para atuar mundialmente pelo esporte, tendo participado das duas últimas edições das Olimpíadas. Além disso, é sargento da Marinha do Brasil e pós-graduada em Gestão de Alta Performance. As três são exemplos de mulheres que não fogem à luta no cenário desportivo. Ambas têm em comum o desafio de ser mulher e atleta. De possuir a ocupação esportiva e em outra profissão.
Para Ana Paula Pacheco, que é uma recordista no Atletismo, bem como, educadora física, é um equívoco pensar que a atleta da categoria feminina possui menos capacidade de estar inserida no esporte do que o homem. E afirma com propriedade, seja por suas vivências esportivas ou conhecimentos científicos: “A mulher, quando descobre sua capacidade, vai longe. Pode treinar horas e horas e se mostrar muito resistente. Pois aprende, desde cedo, a ter foco, diferente de muitos atletas homens que usam toda a força no início do treino e cansam rápido. Alguns que até chegam a subestimar nosso potencial”.
A atleta, apaixonada pelo atletismo desde criança, narra as dificuldades que encontrou em Catalão quando decidiu ser velocista aos 12 anos. Ela, que já se destacava em campeonatos estaduais e regionais da categoria estudantil, no começo da carreira, teve como treinador um professor que não tinha o atletismo como especialidade.
E, como afirma, “o esporte no estado de Goiás é pouco patrocinado, por isso, o atleta iniciante deve correr atrás do que quer, com garra”. Reflexo disso, é que na cidade interiorana não havia investimento eficaz no esporte, tampouco professores especializados para treinar jovens esportistas. “Além disso, eu mesma fazia meus treinos sozinha: pesquisava sobre, via reportagens e corridas na TV, olhava a postura dos atletas e me inspirava”, ressalta.
Aos 14 anos, a catalana já competia profissionalmente. A falta de estrutura e incentivo público não a desanimou. “Minha fome em querer ser a melhor e me destacar no que eu fazia, era muito grande”. Tanto que, já aos 18 anos, se sagrou a melhor atleta do Brasil na categoria Troféu Juvenil de 2009. “Dos meus 18 anos, que foi a primeira vez que eu quebrei recordes no atletismo e, até 2019, eu venho quebrando meus próprios recordes nos 100 metros”. Faz 13 anos que a corredora multicampeã detém de tal recorde e, em 2020 foi nomeada a melhor atleta da história do estado de Goiás nas provas de 100 metros e 200 metros, pela Federação Goiana de Atletismo (FGAt).
Já Regiane Braga, que também começou a competir com 13 anos, relata dificuldades similares às de Ana Paula Pacheco, mas também se destaca pelos seus recordes: a atleta de Anápolis é detentora do recorde estadual de Goiás do salto triplo e em distância, da categoria feminina. No entanto, o maior desafio da carreira de Regiane foi lidar com a maternidade e o esporte, como relata:
“Tive que parar de competir, por um tempo, devido a minha gravidez. Passei uns dez anos no sedentarismo e só retornei em 2019, migrando para as provas de fundo, nas quais sou a primeira do ranking goiano (nas categorias) de 5 e 10 mil. Foi difícil conciliar o esporte e a gravidez, pois, na época, eu era muito nova e não conseguia lidar muito bem com o papel de ser mãe e atleta”. A anapolina ainda afirma que, naquele momento, tinha perdido sua mãe e era mais um motivo por não conseguir adaptar as duas áreas de sua vida.
Ambas as goianas acreditam que a Bolsa Atleta, incentivo financeiro do Governo Federal, por mais que seja eficaz e de grande auxílio, não consegue suprir necessidades básicas de um esportista. E, pela escassez de patrocínios em Goiás, as atletas afirmam não ser possível viver do Atletismo no estado e, até mesmo, a nível nacional.
A exemplo da realidade de Regiane, a atleta precisa conciliar o esporte com outro emprego além do cuidado doméstico e familiar: “Acordo às quatro da manhã, saio para o trabalho e volto para casa às seis da tarde. Ainda tenho que cuidar do lar, do filho, treinar. Então, não é fácil, mas o esporte foi a melhor escolha que fiz na vida”. Ana Paula Pacheco também possui outras ocupações: “Nunca parei de estudar por conta do esporte, pelo contrário, sou formada em Educação Física, tenho duas Pós-Graduações e atualmente estou cursando Teologia e treinando”.
Já Laís Nunes, que começou no Wrestling aos 12 anos por meio de um Projeto Social em Barro Alto, vive exclusivamente do esporte, apesar de possuir outras formações. De origem humilde, a goiana se destacou já aos 15 anos e acumula diversas vitórias em diferentes níveis. Laís foi a primeira atleta brasileira a conseguir medalha de ouro pan-americana nas três categorias etárias internacionais, além de ter sido a mais jovem a defender o país no Wrestling em uma edição de Jogos Olímpicos, com apenas 23 anos, no Rio 2016.
A atleta do Vale do São Patrício, que também é sargento da Marinha, assim como Ana Paula e Regiane, acredita que não dá para viver do esporte no Brasil ainda, pois a questão financeira, de patrocínio, é muito escassa, principalmente no Wrestling. “Eu mesma, duas vezes atleta olímpica, não tenho patrocínio”, afirma Laís. Apesar disso, a Wrestler reforça que a Bolsa Atleta, aos esportistas, tem sido de grande valia. Porém, para aqueles que não têm patrocínio ou que não estão em alguma instituição das Forças Armadas, precisam usar o valor para necessidades, como suplementação, materiais esportivos, inscrição em campeonatos etc. E não é uma quantia suficiente para tal finalidade.
Ademais, Laís ressalta que o esporte hoje, no Brasil, tem sido sustentado pelas Forças Armadas: “É o que dá segurança aos atletas. Digo isso, após estou a 17 anos, em alto rendimento, com o suporte da Marinha para não ter que trabalhar e treinar. Senão, seria impossível estar num alto nível, tendo condições de ter toda a preparação que é extremamente difícil”.
Preconceito
Além das dificuldades financeiras, a discriminação de gênero é marcante na vida das mulheres atletas. Ana Paula Pacheco relata que, no início de sua carreira, sofreu retaliações ao escolher o esporte: comentários inconvenientes sobre seu corpo, o relacionando com um masculino, e o desprezo ante sua escolha ao atletismo ao invés de outra carreira. “O engraçado é que as falas maldosas sobre as minhas vivências no esporte surgem justamente das mulheres”, afirma a atleta.
No entanto, Ana Paula tem o foco como principal recurso nas pistas. Além de uma forte espiritualidade, por ser cristã. Busca incessantemente a concentração nos campeonatos e conquistar sempre mais. Esse atributo da velocista chegava a contrariar outros atletas: “Nas competições, eu ia focada, ‘arregaçava’ nas corridas, conquistava medalhas, quebrava um recorde e meus amigos de equipe até que pegavam medalhas, mas não chegavam a quebrar recordes. Não tinham aquele foco, ambição. E, isso em mim, incomodava aos atletas do grupo, por conta dos meus resultados e, principalmente, por ser mulher. Eu era a única menina que fazia treino com os rapazes”.
A corredora de Catalão acredita que quando há foco, há resultado. “Se você treina ou estuda todo dia, você está plantando algo. Se planta insistência, persistência e resistência, colhe isso”. Da mesma forma, Ana Paula narra um episódio em que sentiu na pele a exclusão por ser mulher: “Quando eu fiz 18 anos e fui treinar fora (de Catalão), com o medalhista olímpico Vicente Lenilson, lembro uma vez que um cara falou no microfone: ‘Tem um atleta aqui que treina com o Vicente Lenilson, vamos bater palmas para ele’. O atleta em questão, estava treinando com o Vicente há quatro meses, enquanto eu, há dois anos. E por que que ele não falou no microfone: ‘Ah, a Ana Paula que tá treinando com o Vicente’? Já começa por aí.”
Laís Nunes também comenta o preconceito na luta olímpica, principalmente por ser mulher e do interior. “Muito pela ignorância e falta de conhecimento do Wrestling no Brasil”, a atleta reforça. O foco e a paixão pelo Wrestling foi o que moveu a goiana em sua carreira e que não deixou comentários maldosos e discriminatórios lhe atrapalharem, em ênfase, no início. “Eu sempre amei lutar e fazer isso me deixa feliz. O esporte me agrega, principalmente como mulher”. A Wrestler afirma que a luta não masculiniza uma mulher, não a torna menos feminina. Lutar, para Laís, é fazer aquilo que ama. Correr, para Ana Paula Pacheco e Regiane Braga, é fazer o que traz felicidade. É lutar pelas suas próprias conquistas.
Vestir-se de luta
Quando uma menina cresce empenhada em se inserir no cenário esportivo, que majoritariamente é machista, e em se tornar esportista profissional, deve, desde cedo, aprender a não fugir à luta. Contra o preconceito, falta de visibilidade e investimento na prática esportista feminina, que pode gerar desânimo nas jovens. “É necessário não perder o foco”, como ressalta Ana Paula Pacheco.
Esta luta é reflexo das barreiras sociais, das proibições passadas, da anterior falta de direitos civis femininos. Assim, a atleta tende a herdar esta luta todos os dias quando calça sapatilhas de corrida ou chuteiras. Quando veste quimono ou collant. Quando ocupa sua raia, sua posição em campo. Seu lado do tatame.